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DIÓGENES
REDIVINO
(José
Carlos Broch)
Cenário: Interior
de um quarto, paredes de pedra, mais parecendo um porão. Em um extremo do cenário,
uma mesa com um candelabro e um pergaminho.
Personagens:
Diógenes;
Um discípulo;
Um homem de fraque;
Uma mulher com cigarilha;
Uma mulher de lenço preto;
Uma senhora da alta sociedade;
Uma mulher com vestido vermelho;
Um homem de branco.
Cena
única
Sobe o pano - palco
às escuras, ouve-se apenas o narrador.
Narrador :
Entre os
anos de 413 e 325 antes de Cristo, viveu na Grécia, mais precisamente em
Atenas, um filósofo cujo comportamento curioso despertou estranheza nas
pessoas que, pouco ou nada entendendo seus atos, questionavam sua maneira de
ser e viver. Tinha o hábito de morar em um tonel. Possuía apenas uma única
veste e, não raro, saía à luz do dia com uma lâmpada acesa, à procura de
um homem honesto. Era ele Diógenes, o cínico.
Entra em cena Diógenes,
portando uma lâmpada acesa. Dirige-se à mesa e acende o candelabro. As luzes
do palco se acendem. Diógenes se põe a ler o pergaminho quando entra em cena
seu discípulo e chega-se ao lado da mesa.
Discípulo :
Mestre Diógenes,
por onde andaste? Há dias que estou à sua procura... Estive nas ruas e não
o vi. Fui até seu tonel e não o encontrei. Agora o vejo aqui, neste porão
úmido e abandonado... Por que te retiraste para este lugar?
Diógenes :
Por
vergonha!
Discípulo :
Vergonha?...
Mas eu julgava ser o senhor a única pessoa reta o bastante para não se
preocupar com isso. O senhor tem vergonha de si? Vergonha de fazer o que faz?
Vergonha de ser chamado de louco?
Diógenes :
Não. Não,
meu jovem... Vergonha do ser humano e dessa sociedade.
Discípulo :
Não
entendo, mestre... Durante anos tens me ensinado a ver as falhas da
humanidade; os erros estúpidos que os homens cometem. Pensei que já tinhas
visto de tudo... Mas o que viste de errado agora?
Diógenes :
Amor!
Discípulo :
(espantado) Amor?... Mestre, o que há de errado no amor? Um sentimento tão
bonito, tão sublime, uma coisa tão pura; uma das poucas virtudes do
homem,...
Diógenes :
Justamente
por isso... O homem está desvirtuando o amor. Uma palavra tão comentada, tão
pronunciada, mas ninguém sabe seu sentido real. Eu gostaria de encontrar alguém
que soubesse... alguém que vivesse o amor realmente. Quando eu me lancei em
busca de um homem de verdade, sabia que jamais o encontraria. Fazia isso
apenas para ferir a consciência do homem. Porém,... com o amor é diferente.
Eu tenho esperança de que ainda exista alguém na face da terra, que no seu
medo de viver e agir, seja uma prova viva do amor verdadeiro. O amor não pode
estar morto... Porém eu já estou velho e cansado para me lançar em outra
busca...
Discípulo :
Não seja
por isso, mestre... Com a sua permissão, eu me lançarei às ruas e
espalharei a notícia. Prometerei honras e prestígio a quem for uma prova
viva de amor. Trarei os candidatos aqui e o senhor só terá o trabalho de
julgá-los.
Diógenes :
(pensativo) Sim,... sim. Faça isso; e eu anunciarei por todo lugar o nome do
escolhido.
Narrador :
Então, saiu
o discípulo às ruas e às cidades vizinhas, anunciando a nova busca do filósofo
e as honras que caberiam ao escolhido.
Em seguida volta o
discípulo.
Discípulo :
Mestre,
mestre... já estou de volta. Espalhei a notícia por todo lugar onde meus pés
me levaram. Pude sentir a reação do povo. Muitos discutiam nas praças,
outros riam pensando se tratar de mais uma... de suas loucuras; e outros
ainda, ao receber a notícia, ficavam estáticos, pensativos, baixavam a cabeça
e se retiravam... Contudo,... apesar de toda essa reação, não acredito que
alguém aceite o convite, ou melhor... o desafio. Devem estar pensando que é
outra maneira do senhor demonstrar seu escárnio pela humanidade.
Diógenes
: Seja
paciente, meu jovem. Vamos aguardar...
Pausa. Entra em cena
um grupo de pessoas. Um homem vestido de fraque, cartola e com barba “a la
Lincoln” . Uma mulher vestindo roupas simples (um longo vestido preto,
sapatos pretos comuns, meias pretas e um lenço preto na cabeça). Um homem
vestindo uma longa túnica branca com um capuz cobrindo sua cabeça e
escondendo seu rosto. Uma mulher vestida como qualquer grande atriz dos anos
quarenta, adornada de muitas jóias e portando uma cigarrilha. Uma mulher com
um vestido sexy, vermelho e sapatos de salto alto. Uma senhora da alta
sociedade, com roupas atuais e algumas jóias. Param no meio do palco e põem-se
a olhar o cenário.
Homem de fraque :
Que
lugar mais estranho...
Mulher com
cigarrilha :
É este o
lugar?... Pensei que seria em um palácio?...
Discípulo :
Por aqui,
amigos. Por aqui...
Acomoda-os
em um banco mais ao fundo. Todos olham por algum tempo até que Diógenes se
apresenta.
Diógenes :
Saudações,
meus caros amigos. Creio que vieram até aqui atendendo a notícia que meu
discípulo divulgou. Sou Diógenes, discípulo de Antístenes. Sou conhecido
pelo povo como um homem sábio,... ou um maluco ou apenas mais um filósofo. A
verdade é que sou um inconformado. Tenho verdadeiro interesse pela
humanidade; e é por isso que me chamam “O Cínico” . Contudo, e apesar de
tudo, tento transmitir algum ensinamento, através de meus atos, a esse mundo
cego. Estou decepcionado com a humanidade. O homem já se tornou indigno até
de ser chamado de criatura. É incapaz de qualquer atitude nobre. E é por
isso que temo em pensar que ele já se tornou incapaz até de amar... Mas,
talvez algum de vocês possa me dar um pouca de esperança... Sejamos
diretos... Alguém dentre vocês é capaz de me ensinar o que é amor?
O homem de fraque
se levante e diz.
Homem de fraque :
Mas é
claro... Com muito prazer. Ninguém melhor que eu para isso, pois vivo o amor
constantemente. O amor é algo simples mas só poucos o compreendem. Eu posso
dizer que sou o amor em pessoa, já que quero bem a todos. Minha esposa?...
Sou um exemplar marido para ela. Nunca tomei qualquer atitude que ferisse a
sua dignidade. Nunca lhe dirigi palavra de ofensa, nunca a traí,... enfim,
nunca abusei da minha posição como marido. E exijo a mesma atitude dela como
retribuição. Que ela me seja fiel...
Mulher de vestido
vermelho :
(interrompendo) Isso é besteira!... (grita sem sair do lugar)
O homem de fraque
prossegue inconformado com a interrupção.
Homem de fraque :
... que ela
não me dirija palavra de calúnia e seja moderada.
Diógenes medita um
pouco e pergunta:
Diógenes :
Só isso?
Homem de fraque :
Não, claro
que não. O mesmo acontece no trabalho. Jamais ofendi qualquer colega ou meu
subordinado. Sempre trato a todos com moderação e respeito.
Diógenes :
Respeito!..
É isso; respeito e nada mais. Você pode ser uma prova viva de respeito mas
nunca de amor. Você pode respeitar o seu pai ou seu patrão mas isso não
prova que você o ama. Talvez você até o odeie. Você está confundindo
tudo. Não pode me explicar o que é amor. Talvez você nem o conheça.
Mulher com
cigarrilha :
Mas é claro
que ele não pode explicar o que é o amor. (levanta-se) Por exemplo,... você
diz que ama sua mulher mas não prova. É preciso provar o seu amor por ela.
Atualmente não tenho marido. Se o tivesse, provaria todo meu amor por ele.
Sabe... sou uma mulher muito rica e lhe daria carros, empregados, todo
conforto possível. Isto sim que é amor. Daria tudo que tenho ao meu marido.
Diógenes :
Menos a si
própria.
Mulher com
cigarilha :
Como?...
Diógenes :
A sua
generosidade envolveria apenas os bens materiais mas não a si própria.
Mulher com
cigarrilha :
Mas não é
só isto. Eu sou uma pessoa benquista devido ao meu grande amor. Eu dou
presentes caros a todos meus amigos. Sou uma pessoa muito sociável. Eu amo a
todos e todos me amam. Todos... Todos me...
Diógenes :
Admiram.
Mulher com
cigarrilha :
Isso
mesmo... todos me admiram. Como seria isso possível se eu não demonstrasse
meu amor primeiro?
Diógenes :
Por você
ser generosa e seus amigos interesseiros. Como eu disse, você pode ser uma
prova de generosidade mas não de amor. Como você pode amar se não envolve a
si própria. Talvez, no fundo, você seja uma grande egoísta pois se faz
generosa para satisfação própria.
A mulher com
cigarrilha se ofende e sai de cena. A mulher de lenço preto se levanta e, com
muita humildade, interrompe.
Mulher de lenço
preto : Acho
que todos estão fazendo uma grande confusão. Ora... quem sou eu para lhes
dizer que é amor? Mas diante de tais afirmações, tenho que me pronunciar.
Dos tempos de pequenina, até os dias de hoje, tenho sido a expressão do amor
constante; na forma de tratar as pessoas, no modo como me comporto, até na
maneira como crio meus filhos.
Diógenes :
Poderia ser
mais clara?
Mulher de lenço
preto :
(meio envergonhada) Bem... quando eu era mocinha, sempre obedecia a meus pais,
fazia tudo para agradá-los. Era uma filha exemplar; fazia todo o serviço de
casa, limpava, arrumava... e assim sou até hoje. Boa dona de casa, boa
esposa, amo muito meu marido e nunca discordei de qualquer ordem sua. Sempre
satisfaço suas vontades com muita humildade e amor.
Diógenes :
E seus
amigos?
Mulher de lenço
preto : Meus
amigos?...
Diógenes :
Sim, seus
amigos, seus vizinhos?...
Mulher de lenço
preto : Ora...
eu quero bem a todos eles...
Diógenes :
Minha
senhora... eu sou um homem vivido, e já tenho visto de tudo por este mundo.
Por isso tenho experiência o bastante para entender que o modo como a senhora
vive não é uma expressão de amor. É sim de submissão. Eu sinto muito se
lhe desagrado, mas o fato de você ser submissa a uma pessoa não quer dizer
que você a ama. Talvez, na verdade, seja puro medo!... Você ama a seu marido
ou tem medo dele?...
A mulher de lenço
preto baixa a cabeça e se retira. A senhora da alta sociedade se levanta e,
muito afoita, se dirige a Diógenes.
Senhora da alta
sociedade : Se
o senhor puder me dispensar sua atenção eu lhe explicarei direitinho o que
é amor.
Diógenes,
sem dizer nada, consente:
Senhora da alta
sociedade : Bem...
talvez vocês não saibam,, mas sou assistente social e... bem, é complicado
dizer o que é amor; mas o fato é que o amor está em mim... Dou assistência
aos pobres, ajudo todos que recorrem a mim sem qualquer preconceito contra a
cor ou credo. Vou às vilas marginalizadas, levo remédios, alimentos e, não
raro, quando encontro um mendigo na rua, eu o levo para casa e lhe dou roupas
e abrigo. Sabe... eu poderia ficar aqui falando e falando do meu amor horas e
horas, mas... ora, isso não é preciso. Basta ler os jornais; eles dizem
tudo...
Diógenes :
(interrompendo) A senhora já deu algum donativo ou auxílio sem que o fato
tivesse conhecimento público?
Senhora da alta
sociedade : Ora,...
não me lembro de nenhum...
Diógenes :
Acontece que
o seu “amor” está me cheirando à vaidade. (olha firme para a senhora) E
nada mais é senão vaidade.
A senhora da alta sociedade se descontrola.
Senhora da alta
sociedade : Não
é verdade!... Não é verdade!... (e retira-se)
A mulher com vestido vermelho se levanta.
Mulher com
vestido vermelho :
Sabe...
todos eles quase chegaram a uma definição de amor, mas todos foram muito
covardes.
Diógenes :
Suponho que
você sabe o que é amor...
A mulher com
vestido vermelho sorri maliciosamente.
Mulher com
vestido vermelho :
O amor não
É... o amor se FAZ!
Diógenes :
Como assim?
Mulher com
vestido vermelho :
Ora, será
que você é tão inocente assim? Hoje em dia qualquer pessoa sabe que o amor
de verdade, entre duas pessoas, se faz em uma cama.
O homem de fraque,
que até então assistia a tudo em silêncio, se escandaliza;
Homem de fraque :
Tenha
pudor! (e se retira)
Mulher com
vestido vermelho :
Afinal, não
é o que se divulga por todas as formas de comunicação? O amor... o amor em
outras palavras é uma forma de prazer. Todas as pessoas que se amam sabem
disso. Afinal, o que é que uma mulher diz para o seu companheiro quando está
apaixonada? “Vamos fazer amor?”... Então, por que procura por algo que
está aí, estampado tão descaradamente?
Diógenes :
A única
coisa que está estampada descaradamente no mundo á e impureza do homem e a
sua podridão. A mente devassa do homem conseguiu desvirtuar o amor,
transformando-o em algo imundo. Sexo simplesmente por sexo não é, não foi e
jamais será amor.
Mulher com
vestido vermelho :
Então, por
que o mundo inteiro discorda de você?
Diógenes
toma a sua lâmpada e a põe diante da mulher.
Diógenes :
Porque não
há na face da terra um homem que não seja impuro, devasso e corrupto.
A
mulher com vestido vermelho tenta sustentar algum falso orgulho e se retira.
Após isso, Diógenes suspira enfadonho, olha para seu discípulo, e comenta:
Diógenes :
É... parece
que minhas esperanças morreram...
O homem chama a atenção
de Diógenes para o homem de branco que permanece quieto e sentado. O homem de
branco levanta e se põe mais à frente, voltado para a platéia.
Diógenes :
Presumo que
você também acredita ser uma prova viva de amor...?
Homem de branco :
(sem olhar
para Diógenes) Tu o dizes.
Diógenes :
(pensativo) Sei... sei. Deve se tratar de uma pessoa pura, íntegra,
respeitosa, generosa e incorruptível... não é mesmo?
O
homem de branco mantém silêncio.
Diógenes :
Veio aqui
para me fazer crer que és a forma viva do amor..., não é mesmo?
Homem de branco :
Eu
sou a fonte do amor.
Diógenes :
(debochando)
Ah, sim. Pelo fato de ser generoso e dar muitos presentes, por respeitar o seu
semelhante, por ajudar os pobres e por ser submisso aos seus superiores...,
certo?
Homem de branco :
Não.
Diógenes :
Ora,... então
por que razão você é a fonte do amor?
Homem de branco :
Porque
dou a vida em favor de muitos.
Diógenes :
Claro,
mas... me diga. Faz isso para satisfação própria, para alimentar sua
vaidade ou para seu nome se propagar pelo futura como sendo você um mártir?
Homem de branco :
Faço por
amor.
Diógenes :
Sim... m-mas
o que espera em troca?
Homem de branco :
Nada.
Diógenes :
Nada?... Mas
deve haver algum interesse, pois até agora tenho visto que o amor dos homens
é movido por um objeto que o estimula a amar. E você ...? Qual o atrativo da
humanidade que o impulsiona a amá-la desse modo?
Homem de branco :
A humanidade
não me é atraente. Pelo contrário, ela é repulsiva... Mas eu a amo assim
mesmo.
Diógenes :
(perturbado)
Eu... eu estou confuso.
Diógenes
anda em direção à mesa e senta. Põe-se a meditar por um longo tempo com os
olhos fixos no chão. O homem de branco se retira. Após uma pausa, Diógenes
tem um estalo...
Diógenes :
Você não
pode ser humano!...
Diógenes
percebe que o homem de branco já foi. O discípulo aponta para o lado por
onde o homem de branco saiu e diz:
Discípulo :
Foi-se.
Diógenes :
Ele não
podia ser humano... pois o seu amor está acima da razão.
Dito isto, Diógenes
toma sua lâmpada (ainda acesa) e estende-a na direção por onde saiu o homem
de branco. Após, estende a lâmpada na direção da platéia e, com um sopro,
apaga sua chama.
As luzes do palco se apagam.
Cai o pano.
“Qualquer coincidência
com pessoas vivas ou mortas, é mera semelhança.”
Obra: Diógenes
Redivivo (ou O amor em debate)
Autor: José
Carlos Broch
Colaboração: Gerhard
Grasel, Ricardo Arthur Fitz , Carlos Henrique Weber
Revisão
de texto: Gládis
Knak Rehfeldt
Revisão Exegética:
Gerhard Grasel
Agradecimentos: Ao
ego e à União Juvenil Cruz de Petropólis (pela paciência)
Agradecimentos
especiais:
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